O teletrabalho à luz da Lei nº 83/2021 e as outras formas de trabalho à distância
No ordenamento jurídico português a regulamentação do teletrabalho nasceu no Código do Trabalho de 2003 que, acompanhando de perto a Acordo Quadro sobre o Teletrabalho, de 16 de julho de 2002, quer quanto à sistematização, quer quanto ao conteúdo, o plasmou nos artigos 233º a 243º. Com o Código do Trabalho de 2009, esta matéria passou a ser tratada nos artigos 165º a 171º, com um conteúdo muito semelhante.
A sua fraca implementação até ao surto da pandemia, em 2020, nunca deu para testar o regime. A partir de março de 2020 cerca de 1 milhão de trabalhadores passou a laborar em teletrabalho como forma de reduzir o contacto social e assim prevenir a propagação do vírus. É esta utilização em massa que traz à luz as suas insuficiências regulatórias, nomeadamente sobre a vida privada versus vida profissional, disponibilização dos instrumentos de trabalho, compensação de custos com o «local» de trabalho e respetivos equipamentos, isolamento social, entre outros.
É neste contexto que foi publicada a Lei nº 83/2021, de 6/12, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2022, diploma que procura agora regulamentar o teletrabalho, atendendo à experiência recolhida durante o período e projetando-o para uma utilização pós pandemia mais intensa e alargada.
Em 2020, com a necessidade de distanciamento físico ditada pela primeira fase da pandemia COVID 19, o teletrabalho passou a ter um protagonismo súbito e alargado, abarcando formas subordinadas e formas autónomas de trabalho, em alguns casos, mesmo sem recurso às tecnologias de informação. Na Lei 83/2021, o legislador veio conformar esta relação de trabalho, alterando o articulado do Código do Trabalho que trata o tema, artigos 165º a 171º.
Assim, o diploma começa logo por trazer uma nova redação ao artigo 165º do Código do Trabalho que permite articular logica e funcionalmente as duas principais formas de trabalho não presencial: teletrabalho e trabalho no domicílio. Assim, o nº 2 deste artigo introduz o conceito de trabalho à distância de modo a abranger o teletrabalho, como modalidade de trabalho subordinado, e o trabalho no domicílio, definido no artigo 1º da Lei 101/2009, de 8 de setembro, como trabalho juridicamente autónomo prestado em regime de dependência económica.
O novo conceito de teletrabalho
Na sua atual redação, o artigo 165º do CT considera teletrabalho subordinado aquele que é prestado por um trabalhador em local não determinado pelo empregador e através do recurso a tecnologias da informação e comunicação.
Assim, para que uma prestação laboral seja passível de enquadramento no regime de teletrabalho tem de haver recurso às tecnologias de informação e comunicação (TIC). Todavia, a presença das TIC não é suficiente, é preciso que haja uma separação geográfica do posto de trabalho e em local não determinado pelo empregador.
O local de trabalho é um elemento essencial ao contrato de trabalho. Trabalhar de forma subordinada é executar uma prestação durante um certo tempo e num determinado local, sendo este objeto de especial proteção, nomeadamente quanto à sua alteração unilateral, como versa o artigo 193º do Código de Trabalho.
A expressão “local não determinado pelo empregador” constante desta nova versão do artigo 165º, deve ser entendida de forma restrita quanto à sua literalidade, como local não gerido pelo empregador, sobre o qual não tem acesso imediato e irrestrito, seja o domicílio do trabalhador ou um espaço de co-working. Isto significa que não há teletrabalho quando este se desenvolve em qualquer espaço do empregador, ainda que fora do centro principal da organização.
Desapareceu agora do conceito legal quando referência à intensidade da exteriorização, permitindo combinar formas de teletrabalho permanente, na qual a prestação laboral se efetua sempre em local externo à organização do empregador, com teletrabalho pendular, em que se alternam os períodos de trabalho presencial e de trabalho remoto. Com a troca da característica habitualidade pelo misto presencial procura o legislador moldar o regime de modo a atenuar o isolamento do trabalhador.
Alterações à formalização do contrato de teletrabalho
Na versão atual, vem agora o legislador distinguir regime diferente quando a proposta para a prestação laboral em teletrabalho é feita pelo empregador ou pelo trabalhador. O artigo 166º do CT ocupa-se do acordo para a prestação de teletrabalho e o artigo 167º do CT regula a duração e os modos de cessação da prestação, em articulação com o artigo anterior.
No artigo 166º, somos agora confrontados com uma perspetiva dualista que distingue o acordo cuja proposta é feita pelo empregador daquela cuja iniciativa é do trabalhador. No primeiro caso, a lei reconhece ao trabalhador o direito de aceitar ou recusar a proposta patronal, sem qualquer dever adicional de fundamentar a recusa (art. 166º, nº 6), não podendo sofrer consequências negativas em razão dessa recusa, nomeadamente o despedimento ou outro tipo de sanção. No segundo caso, o empregador também pode recusar, mas está obrigado a fundamentar a recusa, por escrito, sempre que esta não esteja relacionada com o tipo de atividade desempenhada pelo trabalhador ou com a falta de meios e recursos do empregador (art. 166º, nº 7).
O regime legal estabelecido deixa, contudo, situações possíveis sem resposta: a) qual o prazo que o empregador dispõe para apreciar a proposta do trabalhador, aceitando ou recusando; b) qual o valor do silêncio do empregador em relação à proposta de teletrabalho formulada por trabalhador; c) qual a consequência se a recusa do empregador não obedecer a forma escrita ou sem ter a necessária fundamentação.
Quanto ao conteúdo do acordo a formalizar, é agora obrigatório indicar a propriedade dos instrumentos de trabalho, sua instalação e manutenção, bem como a indicação do local de trabalho (alínea b) e o horário de trabalho (alínea d).
Entre as seis modalidades de contrato de trabalho reguladas na Secção IX do Código do Trabalho, o teletrabalho é a única que impõe a indicação, por acordo escrito, do horário de trabalho, o que significa que, diferentemente do que sucede com a fixação de horário de trabalho em regime presencial – definido unilateralmente pelo empregador, como manifestação do seu poder de direção (artigo 212º CT) – no teletrabalho o horário carece do acordo de ambas as partes. O facto do local de trabalho ser normalmente o domicílio do trabalhador e a delimitação do tempo de trabalho do tempo de descanso, separando vida profissional da vida pessoal, são as razões subjacentes aos critérios do legislador.
O artigo 166º, nº 4 prevê agora que o acordo para a prestação de teletrabalho deve conter e definir o local em que o trabalhador realizará habitualmente o seu trabalho, o qual será considerado para todos os efeitos legais, como o seu local de trabalho, mesmo que isso coincida com o seu domicílio, podendo o mesmo ser alterado mediante acordo escrito com o empregador (art. 166º, nº 8). Trata-se de incluir um elemento fundamental no contrato de trabalho (artigo 193º, nº 1 CT), que terá sempre de ser compaginado com o local de trabalho presencial, nos regimes híbridos.
Duração e formas de cessação de cada uma das submodalidades de teletrabalho
O nº 1 do artigo 167º do CT, tem uma nova formulação, prevendo que o acordo pode ser de duração determinada ou de duração indeterminada.
Nos termos do artigo 167º, nº 3, sendo o acordo de teletrabalho de duração indeterminada, qualquer uma das partes pode fazê-lo cessar mediante comunicação escrita que produzirá efeitos no 60º dia posterior àquela, sem necessidade de invocar qualquer causa ou motivo. Cessando o acordo por denúncia, o efeito será a ocupação ou retoma da atividade em regime presencial.
Tendo sido o acordo de teletrabalho sujeito a termo resolutivo, cessa por caducidade por verificação do prazo estabelecido. A caducidade, em princípio, não opera automaticamente, carecendo de ser acionado por escrito pelo sujeito interessado, com a antecedência mínima de 15 dias sobre a data de termo, nos termos do nº 2 do artigo 167º.
O alargamento do teletrabalho a novas categorias de trabalhadores
A Lei nº 83/2021 atribui o direito a prestar atividade em regime de teletrabalho a quem titule e comprove o estatuto de cuidador informal não principal. É o que resulta do nº 5 do artigo 166º-A.
A Diretiva 2019/1158, o grande referente deste diploma, considera cuidador “o trabalhador que presta cuidados pessoais ou apoio a um familiar ou a uma pessoa que vive no mesmo agregado familiar que o trabalhador e que necessita de cuidados ou de assistência significativos por uma razão médica grave, conforme definido por cada Estado-Membro (art. 3º, nº 1-d)), uma noção genérica que deve concretizar-se nos termos da legislação nacional.
Em Portugal, o Estatuto do Cuidador Informal foi aprovado pela Lei nº 100/2019, de 6/09, complementada pelo Decreto Regulamentar nº 1/2022, de 10/01. De acordo com estes diplomas, o cuidador informal pode ser principal ou não principal. Relativamente à pessoa cuidada, quer o principal, quer o não principal, pode ser o cônjuge ou unido de facto, parente ou afim até ao quarto grau da linha reta ou da linha colateral (art. 2º, nº2 e nº3 do estatuto e art. 5º-d) do Decreto Regulamentar). Cumpridos os requisitos legalmente exigidos, o estatuto de cuidador informal é reconhecido pelos serviços da Segurança Social, mediante requerimento (art. 4º do Estatuto e art. 9º do Decreto Regulamentar).
Quanto à posição do empregador, o legislador replica no nº 5 a fórmula adotada a respeito dos trabalhadores que sejam pais de crianças com idade até aos três anos (ou aos oito anos) – o direito pode ser exercido quando o teletrabalho seja compatível com a atividade desempenhada e o empregador disponha de recursos para o efeito – embora o nº 6 pareça estender o fundamento da recusa a “exigências imperiosas do funcionamento da empresa”.
Os encargos e a compensação das despesas adicionais pelo empregador
A nova regulamentação, para além de substituir a natureza habitual por um regime hibrido como forma de combater o isolamento; para além de impor um dever geral de contacto pelo empregador fora do horário acordado, para preservar a duração e organização do tempo de trabalho, para combater os custos do teletrabalho para o trabalhador, reforça o dever do empregador em fornecer os equipamentos e sistemas necessários à sua realização, bem como a suportar os encargos adicionais resultantes da execução da atividade fora das instalações do empregador, conforme artigo 168º com a nova redação.
A obrigação do empregador de disponibilização de sistemas necessários à realização do teletrabalho resulta da aplicação do princípio da equiparação de tratamento entre a atividade desenvolvida na empresa e no domicílio ou outro local escolhido pelo trabalhador. Neste âmbito, inclui-se tudo o que diz respeito a tecnologias de informação e comunicação, desde os equipamentos informáticos, telemáticos e de telecomunicações, aos programas, bases de dados, licenças. Do artigo 168º não parece resultar a disponibilização de equipamento de escritório mas, à luz da aplicação das normas de segurança e saúde no trabalho, será sempre discutível a disponibilização de uma cadeira ergonómica, por exemplo, no caso do trabalhador não ter e o teletrabalho ter sido solicitado pelo empregador.
Quanto às despesas adicionais mencionadas nos números 2 do artigo 168º, parece incluir consumos de eletricidade, internet e comunicações, bens consumíveis como tinteiros e papel, mas parece excluir outros consumos domésticos como o consumo de água ou a climatização do espaço onde o trabalho é realizado, se a fonte for outra que não a eletricidade. O legislador, para distinguir e apurar os consumos domésticos normais dos consumos profissionais, estabeleceu como critério, no número 3, a comparação entre os custos anteriormente existentes com a vivência nesse espaço, e os adicionais para o mesmo espaço após a iniciação da prática do teletrabalho, tomando como referência o mês homólogo.
Em conclusão, embora as alterações trazidas pela Lei nº 83/2021, de 6/12 tenham trazido substância e melhoria ao regime jurídico do teletrabalho, está longe de ter a solução para todos os problemas que o desenvolvimento do regime colocará. Contudo, no plano da conciliação entre a vida profissional e familiar o regime tem virtualidades inegáveis, daí a sua crescente aceitação entre os trabalhadores.
Funchal, 28 de fevereiro de 2023