Sobre o chamado direito à desconexão do trabalhador
As condições em que os trabalhadores realizam a sua prestação de trabalho tem sofridos alterações ao longo dos tempos. A limitação da jornada de trabalho foi uma das lutas mais marcantes na história do direito laboral, dando mesmo lugar à comemoração do dia do trabalhador em todo o mundo em 1 de maio e ponto de partida marcante para o direito do trabalho[1].
Intrincada com a duração do período de trabalho estão sempre as condições de saúde física e psíquica do trabalhador, materializadas no descanso, na segurança e saúde no trabalho, na conciliação da vida profissional com a vida privada, na dignidade humana.
No plano puramente jurídico laboral, a questão da duração do horário de trabalho tem sido muito reduzida ao plano remuneratório, considerando-se que o tempo de trabalho realizado para além do horário de trabalho convencionado ou legalmente estabelecido é trabalho extraordinário, e pago como tal.
O desenvolvimento de algumas atividades laborais particulares começaram a trazer situações diferenciadas na sua prestação, com mitigação do tempo de descanso e de liberdade de movimentos do trabalhador, como regime de prevenção ou à chamada, o que em alguns setores, pela sua prática corrente, mereceram tratamento específico nas convenções de trabalho.
Mas, a utilização generalizada das novas tecnologias, algumas disponibilizadas pelos próprios empregadores ao atribuírem telemóvel ou computador portátil ao trabalhador, e a crescente utilização do teletrabalho, tendo vindo a obstar à separação entre tempo de trabalho e tempo de descanso, levando a que o trabalhador acabe por estar sempre conectado com a empresa e a todo o momento disponível perante o empregador.
Como refere Bernardo Lobo Xavier[2], “a conjuntura tem forçado os trabalhadores a suportarem condições de trabalho menos favoráveis e – aqui e além, a verem retiradas conquistas que se pensava estarem solidamente implantadas”, como a limitação da jornada de trabalho e a garantia de períodos efetivos de descanso.
De uma maneira geral, a doutrina jus-laboral identifica este problema e, perante o atual ordenamento jurídico, reconhece ao trabalhador o direito a desconetar-se fora do tempo de trabalho, mas divide-se na resposta a dar para garantir essa desconexão. Uma parte acha que o atual sistema normativo é suficiente, outra parte acha que deve ser reforçado e tornada mais visível essa proteção perante a atual realidade.
Na abordagem a esta temática e exequibilidade das medidas garantísticas, importa ter sempre em consideração que a prestação laboral subordinada se realiza sob a autoridade e direção de outrem (art. 11º do CT), ou seja, é o empregador quem decide o como, o quando, o onde da prestação, consequentemente é o empregador que tem o poder de materializar o tempo de trabalho e de descanso do trabalhador, com todos os riscos inerentes e consequências para a sua saúde física e mental.
Foi em França que o direito à desconexão profissional teve a primeira consagração legal, em 2016, embora tenha sido revogada logo dois anos depois, em agosto de 2018.
Entre nós, a limitação do tempo de trabalho integra o pacote de direitos fundamentais consagrado na Constituição da República Portuguesa. O artigo 59º, nº1, alínea d) da CRP atribui a todos os trabalhadores o direito ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas, acrescentando no seu nº 2, alínea b), que incumbe ao Estado a fixação, a nível nacional, dos limites de duração do trabalho.
O artigo 197º do Código do Trabalho regula a sua duração e organização, sendo essencial para entender os conceitos operativos como período normal de trabalho, período de descanso, trabalho suplementar, e determinar os seus limites. O legislador português, seguindo o Direito da UE, mais especificamente da Diretiva 2003/88/CE, adotou um sistema dito binário, no qual o tempo é de trabalho ou de descanso. Estes conceitos são mutuamente excludentes, o que significa que o tempo que não se enquadre na noção de tempo de trabalho enunciada no art.º 197º do CT, é considerado tempo de descanso, conceito que é assim recortado pela negativa no art.º 199º do CT.
A introdução e massificação das novas tecnologias vieram permitir a execução da prestação de trabalho subordinado sob formas nebulosas perante a repartição dicotómica acima referida.
Segundo o art.º 197º do CT, é tempo de trabalho: i) o período durante o qual o trabalhador exerce a atividade; ii) o período durante o qual o trabalhador permanece adstrito à realização da prestação; iii) certas interrupções e intervalos que legalmente se consideram compreendidos no tempo de trabalho.
A expressão da lei “permanece adstrito à realização da prestação” permite uma amplitude interpretativa que retira clareza e segurança na resposta do direito. Por exemplo, a disponibilidade do trabalhador pode ser afirmada, para efeitos de preenchimento do conceito de tempo de trabalho, apenas quando este se encontre no local de trabalho ou noutro local determinado pelo empregador, como é o caso do chamado regime de chamada/localização?
A interpretação das normas nacionais sobre tempo de trabalho tem de ser articulada com a Diretiva 2003/88/CE e a interpretação que é feita pela Tribunal de Justiça da UE e demais instrumentos internacionais que vinculem o Estado Português, como a Carta Social Europeia Revista (CSER) e a sua interpretação pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais (CEDS).
Esta questão já foi apreciada pelo Tribunal de Justiça da UE várias vezes, tendo genericamente decidido que os períodos em que o trabalhador está fisicamente no local de trabalho, mas autorizado a descansar, são na sua totalidade considerados como tempo de trabalho. Nas situações em que o trabalhador estiver obrigado a estar contactável a qualquer momento, mas não esteja obrigado a permanecer no local de trabalho indicado pelo empregador, o designado período de chamada/localização, o TJ da UE considera que só o tempo relacionado com a prestação efetiva deve ser qualificado como tempo de trabalho. Todavia, importa particularizar que em Acórdão de 21/02/2018, no chamado caso Matzak, o TJ da UE já se pronunciou de forma algo diferente, afirmando como tempo de trabalho todo o tempo de prevenção do trabalhador no seu domicílio dado que tinha de responder às chamadas do empregador num prazo de oito minutos.
Entre nós, em razão do teor do art.º 197º do CT, parece não caber a interpretação que considere como período de descanso aquele em que o trabalhador, ainda que no domicílio, tenha de estar à disposição da entidade empregadora para responder a qualquer solicitação profissional.
Também a CEDS, a quem compete interpretar e monitorizar o cumprimento do CSER, pronunciou-se a qualificar os períodos de prevenção, tendo decidido no sentido de que a equiparação entre o período de chamada/localização e o período de descanso constitui uma violação do direito a “uma duração razoável ao trabalho” previsto no art.º 2º, nº 1 da CSER.
Não havendo no direito laboral português categorias intermédias entre tempo de trabalho e período de descanso, como já se disse, a qualificação dos períodos de disponibilidade como tempo de trabalho é a interpretação que melhor quadra com o princípio fundamental vertido no art.º 59º da CRP, com a proteção legal global dada ao direito ao descanso, à conciliação da vida profissional com a vida familiar, ao direito à proteção da segurança e da saúde do trabalhador.
Contudo, a prevalência deste tipo de situações com a utilização massiva das novas tecnologias nas comunicações entre empregador e trabalhador cria a necessidade de uma resposta legal clara, que não se fique pela proclamação de um direito à desconexão do trabalhador.
O poder de direção do empregador que lhe permite decidir o como, o quando, o onde, e até o modo da prestação, implica que o enfoque da solução deste problema seja forçosamente centrado do lado do empregador[3]. O período de descanso coloca o trabalhador num domínio de liberdade relativamente ao empregador, fora do âmbito dos poderes de direção do empregador, logo é ao empregador que deve ser atribuído o ónus de respeitar esse direito, proibindo-o de o violar e agregando a violação dessa proibição a algum tipo de punição. O mais simples seria, na norma do Código do Trabalho reservada ao período de descanso, impor ao empregador o dever de se abster, durante aquele período, de fazer qualquer solicitação de natureza profissional ao trabalhador por qualquer meio, incluindo os tecnológicos, sendo a sua violação considerada uma contraordenação muito grave.
Tal como explica João Leal Amado, não estamos perante um novo direito do trabalhador, o chamado direito à desconexão profissional: “A desconexão, cremos, não é verdadeiramente um direito. O direito aqui em causa é, sim, tal como se consagra na CRP, o direito ao repouso e aos lazeres, ao descanso semanal, a férias periódicas, à limitação da jornada de trabalho… Mais do que como direito, a desconexão surge, assim, como o efeito natural da limitação da jornada de trabalho, isto é, do balizamento do tempo de trabalho através da definição do horário de trabalho de cada trabalhador.”[4]
Ainda João Leal Amado: “Não é sobre o trabalhador que recai o ónus de colocar o dístico do not disturb! Na porta do seu quarto, assim exercendo um qualquer direito à desconexão profissional (…) Pelo contrário, a obrigação de não perturbar, de não incomodar recai sobre a empresa (…) resultante do contrato de trabalho e da norma laboral aplicável”[5].
Em último rácio, e enquanto isso não acontece, é de admitir associar-se este ato do empregador à prática de assédio moral, prevista e proibida pelo art.º 29º do CT. Perante a amplitude desta previsão legal, o facto da conduta do empregador de violação do período de descanso do trabalhador, se traduzir num comportamento indesejado, praticado no trabalho, e que tem como efeito perturbar o trabalhador, afetando a sua dignidade, pode subsumir uma situação de assédio. A prática de assédio confere à vítima o direito de indemnização nos termos gerais, além de constituir contraordenação muito grave.
- Em Portugal, a regulamentação legal da duração do trabalho teve início com a Lei de 23/01/1891 que fixou em oito horas diárias o período de trabalho dos manipuladores de tabaco. Também o Decreto de 14/04/1891, geralmente reconhecido como o primeiro diploma social por se reportar aos trabalhadores menores, continha regras sobre a duração e organização do tempo de trabalho. A primeira Convenção da OIT, de 1919, é sobre a duração do trabalho na indústria. ↑
- Bernardo Lobo Xavier, Manual de Direito de Trabalho, 3ª edição, Rei dos Livros, 2018, pág. 68. ↑
- Como alerta João Leal Amado em “Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional”, in Trabalho Sem Fronteiras? O papel da Regulação, Almedina, Coimbra, 2017, pág.121, a ousadia do trabalhador de descontar-se pode acarretar ser «desligado» da empresa. ↑
- Idem, pág. 122. ↑
- Idem, pág. 123 ↑